quinta-feira, 9 de março de 2017

No ônibus nos idos 2016

No ônibus para ler em 2020

Trocador era uma espécie de cobrador que ficava na entrada, sentado, para receber a passagem de cada passageiro que entrava.  Um dia desses, na  entrada do ônibus, a Professora viu um moço bonito, que abriu espaço para que ela entrasse antes. Educado, pensou.

Era final de tarde, em Copacabana, muitas pessoas pegavam o ônibus após a saída do trabalho. Quente. O ônibus ainda não tinha ar condicionado, era início de verão. Enquanto o  motorista se demorava um pouco mais para corresponder ao que antes eram dois papeis – motorista e trocador -,  ela caminhava para o fundo do ônibus. Ia pensando que o ônibus poderia ser um local bom para conhecer esse tal moço interessante que entrava. Até conseguiu um lugar, milagrosamente, sentada! 

Não saiu dirigindo o motorista, enquanto fazia a conta e dava o troco aos passageiros que pagavam a passagem em dinheiro. Continuava parado o coletivo, que só andou depois de terminado o trabalho do trocador-motorista. Quando foi dar a partida, no carro grande, o motorista-trocador parou. Era possível ver de lá do fundo do ônibus, um falar alto, alguns gestos, uma certa confusão lá na frente. Bem perto da entrada, bem ao lado da cadeira inutilizada do trocador, havia alguma briga entre passageiros, a moça assistia.

A discussão foi caminhando em alto tom até o final do ônibus. O moço chegava perto dela, assim com certo ar de herói, sob os aplausos de alguns. Seria bonito um beijo de cinema entre ele e a professora, ela pensou. Seguia ele reclamando o roubo de 0,10 centavos do motorista, espremido entre os passageiros em pé seguia pedindo licença devagar até o final do ônibus cheio. Disse que o lugar de ladrão era na cadeia, gritava até palavrões, enquanto certo coro grave de sentados conseguia compartilhar da reclamação exigindo rapidez no trajeto. 

      Sem o ar frio, até o vento que poderia entrar pelas janelas quebradas e abertas se mantinha estático, quente e abafado era o ambiente. Suados estavam todos os muitos.

       Quando o moço chegou ao final do ônibus, o beijo esperado não aconteceu. A moça fez diferente. Primeiramente, retesou o choro, que sabia, viria à tona. Depois, disse com a voz forte de quem dá uma bronca em seus alunos: que era um absurdo, que o motorista estava fazendo papel de dois profissionais, que tinha que fazer a conta corretamente do valor de troco que deveria dar para cada passageiro (falou isso sabendo da realidade das escolas, do quanto a matemática não era o forte dos alunos). Parou de falar assim no meio de um pensamento, por causa da água que naquela hora enchia seus olhos. Sabia que o próximo passo era o embargo da voz, e calou-se.

Nesse momento o quase galã gritou:

_ É petista, com certeza, deve ser dos direitos humanos também. Vai defender bandido! Vai lá na prisão, depois é estuprada e não sabe por quê! – falava de pé, virando-se para o outro lado, tentando encontrar eco em seu falatório, e parecia não ter coragem de olhar nos olhos dela.

_Sou policial! - bradou - Sei bem o que é isso! – ela deveria ser professora, pensou ele, pois levava uma sacola enorme, com muitos papeis.

Nesta hora muitos passageiros dos que estavam sentados e perto da Professora se manifestaram em alto volume e desordenadamente "que ela devia se calar", por que "ele é policial". Muitos também manifestaram certo acordo com a opinião da professora, falando baixo de forma desencontrada faziam uma espécie de coro também.

      Ela não era petista, pensou até em falar, em explicar, mas seria inútil. Não ficou calada, ao som do coro baixo que a defendia. Explicou, respirando fundo, como uma boa professora, a diferença entre ser petista e defender um profissional,  - “que como nós o motorista estava a serviço da sociedade”. Sabia como um policial compreendia a palavra “sociedade”, e usou-a em tom de grifo, pois tivera um aluno policial que a explicara. A sociedade era vista como uma pessoa só, como uma outra pessoa e poderia ser vista como uma instituição até.  

Apesar da passagem cara, ela explicava sobre a diferença entre direitos humanos defendidos na cadeia e a qualidade de trabalho. Ganhava muito pouco ensinando para a escola do Estado, e ele também como Policial, ambos se arriscavam. Sabiam o significado do termo  “condições de trabalho”, tudo que eles não tinham. Ficaram quietos. Cada um seguiu viagem pensando na condição do outro. O policial, a professora e... o motorista que mesmo sem saber de nada conduzia os cento e doze passageiros.

Alguns meses depois até deixaram de receber os salários,  ambos,  a professora e  o policial. Culpa da crise, disseram os governantes. Pensaram um no outro, mesmo àquela distancia de pensamentos, àquela distância de  tempo do ocorrido, àquela distância dos locais de trabalho, e  à  proximidade de a quem serviam, do público, da sociedade. Pensaram bastante, um no outro. Tiveram uma sensação boa, apesar de tudo, talvez isso fosse a tal compaixão de que tanto falam.


Com-paixão, naquele dia, durante a viagem. Ainda no ônibus, quando James o motorista que dirigia o coletivo da marca “Mercedes Bens” arrancou, um passageiro espirrou e outro gritou “Saúde”, e outro ainda gritou “Educação” e uma criança disse alto “Transporte”  e todos cantaram o  hino nacional. Foi lindo.


imagem encontrada no google uma charge do Duke