No ônibus para ler em 2020
Trocador era
uma espécie de cobrador que ficava na entrada, sentado, para receber a passagem
de cada passageiro que entrava. Um dia
desses, na entrada do ônibus, a Professora
viu um moço bonito, que abriu espaço para que ela entrasse antes. Educado,
pensou.
Era final de
tarde, em Copacabana, muitas pessoas pegavam o ônibus após a saída do trabalho.
Quente. O ônibus ainda não tinha ar condicionado, era início de verão. Enquanto
o motorista se demorava um pouco mais
para corresponder ao que antes eram dois papeis – motorista e trocador -, ela caminhava para o fundo do ônibus. Ia pensando
que o ônibus poderia ser um local bom para conhecer esse tal moço interessante
que entrava. Até conseguiu um lugar, milagrosamente, sentada!
Não saiu
dirigindo o motorista, enquanto fazia a conta e dava o troco aos passageiros
que pagavam a passagem em dinheiro. Continuava parado o coletivo, que só andou
depois de terminado o trabalho do trocador-motorista. Quando foi dar a partida,
no carro grande, o motorista-trocador parou. Era possível ver de lá do fundo do
ônibus, um falar alto, alguns gestos, uma certa confusão lá na frente. Bem
perto da entrada, bem ao lado da cadeira inutilizada do trocador, havia alguma
briga entre passageiros, a moça assistia.
A discussão
foi caminhando em alto tom até o final do ônibus. O moço chegava perto dela,
assim com certo ar de herói, sob os aplausos de alguns. Seria bonito um beijo de cinema entre ele e a professora, ela pensou. Seguia ele reclamando
o roubo de 0,10 centavos do motorista, espremido entre os passageiros em pé seguia pedindo licença devagar até o final do ônibus cheio. Disse que o lugar de ladrão
era na cadeia, gritava até palavrões, enquanto certo coro grave de sentados conseguia compartilhar da reclamação exigindo rapidez no trajeto.
Sem o ar frio, até o vento que poderia entrar pelas janelas quebradas e abertas se mantinha estático, quente e abafado era o ambiente. Suados estavam todos os muitos.
Sem o ar frio, até o vento que poderia entrar pelas janelas quebradas e abertas se mantinha estático, quente e abafado era o ambiente. Suados estavam todos os muitos.
Quando o moço chegou ao final do ônibus, o beijo esperado não aconteceu. A moça fez diferente. Primeiramente, retesou o choro, que sabia, viria à tona. Depois, disse com a voz forte de quem dá uma bronca em seus alunos: que era um absurdo, que o motorista estava fazendo papel de dois profissionais, que tinha que fazer a conta corretamente do valor de troco que deveria dar para cada passageiro (falou isso sabendo da realidade das escolas, do quanto a matemática não era o forte dos alunos). Parou de falar assim no meio de um pensamento, por causa da água que naquela hora enchia seus olhos. Sabia que o próximo passo era o embargo da voz, e calou-se.
Nesse momento
o quase galã gritou:
_ É petista,
com certeza, deve ser dos direitos humanos também. Vai defender bandido! Vai lá
na prisão, depois é estuprada e não sabe por quê! – falava de pé, virando-se
para o outro lado, tentando encontrar eco em seu falatório, e parecia não ter
coragem de olhar nos olhos dela.
_Sou policial! - bradou - Sei bem o que é isso! – ela deveria ser professora, pensou ele, pois
levava uma sacola enorme, com muitos papeis.
Nesta hora muitos passageiros dos que estavam sentados e perto da Professora se manifestaram em
alto volume e desordenadamente "que ela devia se calar", por que "ele é
policial". Muitos também manifestaram certo acordo com a opinião da professora, falando
baixo de forma desencontrada faziam uma espécie de coro também.
Ela não era petista, pensou até em falar, em explicar, mas seria inútil. Não ficou calada, ao som do coro baixo que a defendia. Explicou, respirando fundo, como uma boa professora, a diferença entre ser petista e defender um profissional, - “que como nós o motorista estava a serviço da sociedade”. Sabia como um policial compreendia a palavra “sociedade”, e usou-a em tom de grifo, pois tivera um aluno policial que a explicara. A sociedade era vista como uma pessoa só, como uma outra pessoa e poderia ser vista como uma instituição até.
Apesar da
passagem cara, ela explicava sobre a diferença entre direitos humanos defendidos na cadeia e
a qualidade de trabalho. Ganhava muito pouco ensinando para a escola do Estado, e ele
também como Policial, ambos se arriscavam. Sabiam o significado do termo “condições de trabalho”, tudo que eles não
tinham. Ficaram quietos. Cada um seguiu viagem pensando na condição do outro. O
policial, a professora e... o motorista que mesmo sem saber de nada conduzia os
cento e doze passageiros.
Alguns meses
depois até deixaram de receber os salários,
ambos, a professora e o policial. Culpa da crise, disseram os
governantes. Pensaram um no outro, mesmo àquela distancia de pensamentos, àquela
distância de tempo do ocorrido, àquela
distância dos locais de trabalho, e à proximidade de a quem serviam, do público, da
sociedade. Pensaram bastante, um no outro. Tiveram uma sensação boa, apesar de
tudo, talvez isso fosse a tal compaixão de que tanto falam.
Com-paixão,
naquele dia, durante a viagem. Ainda no ônibus, quando James o motorista que
dirigia o coletivo da marca “Mercedes Bens” arrancou, um passageiro espirrou e
outro gritou “Saúde”, e outro ainda gritou “Educação” e uma criança disse alto “Transporte” e todos cantaram o hino nacional. Foi lindo.
imagem encontrada no google uma charge do Duke
imagem encontrada no google uma charge do Duke
Nenhum comentário:
Postar um comentário